G.Fábio Madureira
No início dos oitenta
lá em casa apareceu
a cegonha que sustenta
um pouco do nosso eu.
Quando o doutor me explicou
o futuro tratamento
uma dúvida me aflorou
sobre um procedimento:
o tal parto le Boyer
que em voga se dizia
com muito a oferecer
para a mãe e para a cria.
Com um sorriso bem maroto
respondeu-me o doutor
que também quando garoto
agachava sem ter dor:
“Logo, logo eu desisti,
me cansara de tentar,
é que as mulheres daqui
não conseguem agachar.
Não adianta exercício,
agachar não mais suportam,
para elas é um suplício
e as crianças sufocam.
Esse é o parto natural
que só o bem produziria
mas com elas gera é o mal:
só o sofrimento cria.”
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Agachar pra nós crianças
era um gesto corriqueiro,
nossa vida era mansa
agachando o dia inteiro:
para o leite ordenhar
quentar fogo no fogão
sobretudo pra cagar
era essa a posição
esperar a jardineira
no paiol debulhar milho
contar causos na fogueira
para a índia ter seu filho
era essa a posição
de jogar bola de gude
de se tocar violão
eu não sei como é que pude
perder a minha destreza
sempre tonto ao levantar
e hoje com muita tristeza
já não consigo agachar
Quando se agacha se assenta
em cima do calcanhar
que hoje não mais agüenta
um corpo a se maltratar.
De cara tem o sapato
que da terra nos desliga
e o resto do aparato
com a natureza inimiga.
Logo depois dos meus vinte
agachar não mais podia
e pra mim era um acinte
perceber o que sentia.
Foi aí que começou
em minha vida um calvário
e em minha alma se instalou
do meu prazer o contrário.
Não o prazer masoquista
de quem sofre a natureza
mas aquele que resista
às agressões à pureza.
Hoje entendo esse meu mal
e dele vou me livrar
mesmo sendo anormal
diante de muito olhar.
Desta civilização
terei de me desfazer
pra gostosa posição
eu conseguir reviver.
E agachado bem gostoso
por pra fora esse mal
que meu sistema mucoso
inoculou por igual
deixando-o todo aguado
e meu prazer diminuto.
Ser dessa água livrado
voltando a ser enxuto
será esse o meu parto
produzindo um novo ser
com a criança que reato
pelo sonho le Boyer.