Conto em que narro minha busca para reencontrar os valores da Sabedoria Popular
G.Fábio Madureira
Nasci preto. Mas quando nasci, não havia mais escravos. Não havia mais senzalas. Só havia feitores. Só havia casas. Tanto que me ensinaram que eu poderia um dia ser dono de uma casa-grande. Mas, para isso, era preciso que eu lavasse o rosto, as pernas e os braços todos os dias, com um sabão que se compra das casas–grandes. E esfregasse bem entre os dedos e atrás das orelhas. E eu ainda me lembro que lá em casa podia faltar até feijão, menos o tal sabão que, graças ao bom Deus, nunca faltou. Tanto que, aos sete anos, quando entrei pra escola, já tinha o rosto, as pernas e os braços quase branquinhos, branquinhos. Menos entre os dedos e atrás das orelhas
E era exatamente pelo menos e pelo quase que eu estava indo à escola. E é por isso que a professora me dizia sempre que me cuidasse. Não me esquecesse de me esfregar bem… principalmente entre os dedos e atrás das orelhas… e da maneira que tinha sido ensinado na escola. E que sempre que andasse pela rua, fosse beirando as casas.
Por isso, até os quinze anos, nunca tomei sol, nem aprendi a nadar. E hoje ainda me dá um troço no coração quando me vejo debaixo da marquise do clube vendo os outros meninos, alguns meus colegas lá da escola, espichadinhos na grama fresquinha, fresquinhos da água da piscina formando-lhes pocinhas nos peitos de um branco tostado de sol. Na época eu me colocava lá e sentia uma coisa boa que logo, logo desaparecia quando via, no lugar de peitos brancos, um peito preto … e um rosto , pernas e braços brancos que, em vez de se tostarem, voltariam a ficar pretos… e a reprovação no grupo, na rua, em casa, na igreja…e o mais longe ainda ou o nunca de uma casa-grande. E aí eu me cosia mais à parede do clube e era bem rente a ela e às outras das outras casas que eu chegava à minha. Minha mãe me esperava com um beijo de aprovação e, numa dessas chegadas, me disse: “Olha meu filho, seu pai e eu temos feito muitos sacrifícios para te educar e os outros. Mas Nosso Senhor vai ajudar que ocê vai ser um grande homem! Esta noite mesmo a gente tava conversando. De fato a gente não pode. Mas nem que a gente tenha que roubar mais do nosso sono, ao menos ocê vai fazer o ginásio. O estudo faz muita falta! A gente que o diga! O problema é o sabão que é muito caro. Mas, com a ajuda de Deus, ele não há de faltar! E daqui uns cinco anos, ocê, seguindo as lições dos mestres lá do ginásio, seu peito e pescoço tarão branquinhos, branquinhos. E antes de Vicente Enterrador jogar a terra na gente, nós vão te ver com uma casa-grande… Viu, meu filho?” E passou sua mão carinhosa, calejada sobre o meu cabelo. E me deu um sorriso de felicidade. E eu fiquei comovido à bessa.
De fato fui pro ginásio. Uniforme novo. Tudo novo. Meu pescoço já estava começando a clarear. Só o que me deixava chateado era o meu desconcertamento dentro daquela roupa! Ainda bem que havia uns poucos como eu! Mas a gente não se falava. A gente não se entendia. Cada um de nós, desconcertados, queria falar era com os outros cujos uniformes parecia fazer parte deles. E eles ficavam tão bem dentro daquela roupa! Era para eles que os professores sempre faziam as perguntas, sempre elogiando, desculpando ou mesmo respondendo. Talvez inclusive fosse por isso, e não pelo caimento perfeito dos seus uniformes, que a gente queria conversar era com eles e jamais entre nós. Afinal, eram eles os inteligentes e nós outros tínhamos a aprender com eles. E cada vez mais a casa-grande ficava mais perto um pouco…
No final de uma das aulas de Ciências, o professor começou a nos falar do fenômeno da fotossíntese. Pediu pra naquele mesmo dia a gente replantar uma plantinha qualquer dentro de uma caixa cuja parte superior deveria ter uma abertura apenas do tamanho de um dedo e levá-la na próxima aula. E lá em casa, quando eu estava preparando o dever, papai me recriminou:
_ Onde já se viu, minino, colocar uma plantinha dessas dentro duma caixa? Num tá vendo que isto é maldade?! Que ocê vai matar a coitadinha?
_ É o professor que mandou, papai. É pra gente estudar o fenômeno da fotossíntese.
_ Ah! Sei!…Êta ferro!… Tá vendo, muié, como o nosso fio já tá falando difícil?! Benzodeus, meu filho! Ocê ainda vai ser um grande homem!
Nesta aula o professor me elogiou. Fiquei todo cheio. Não sei porquê, minha plantinha foi a única da sala a apontar do lado de fora da caixa. O professor pegou-a e colocou-a em cima de sua mesa. Mas não era a minha caixinha que tinha saído de cá de trás da sala e ido lá pra frente. Era eu… Era eu que estava ficando inteligente. E o professor pegou uma outra caixa cuja planta não aparecia e tampou a abertura com a mão e perguntou:
_ Se eu a deixar assim tampada algum tempo, o que acontece com a planta?
_ ( … )
_ Ninguém sabe?!…
Não. Ninguém sabia. Ninguém respondia. Alguns tentaram. Ninguém acertava. Lembrei de papai. De sua recriminação. Mas tive medo. Meu pai era um ignorante de peito preto. De fato não era escravo. Não morava em senzala. A abolição já se dera. Era feitor. Mas tinha peito preto e…
_ …você aí…é…você mesmo…isso…dê sua opinião…quem sabe!…
_ …ela…ela morre…
Mais elogio. Todos se voltam para trás. E eu sorrio murcho, sem graça. E vejo papai… e vejo um outro pai: alguém que sabe alguma coisa. Alguém que acertou a pergunta de um professor sobre o fenômeno da fotossíntese… E o professor, após o elogio:
_ Já que você acertou, Pedro, me responda agora: por que a planta procura a abertura?
_ (… )
_ Não sabe? … Quem sabe?
Todos os outros levantaram a mão.
E a resposta me fez ver Zezinho. Zezinho pegando um saco de feijão de sessenta quilos, jogando-o às costas, andando e conversando e subindo ladeiras, inclusive a do Carmo, e entregando-o lá na venda de papai. Zezinho preto, preto, preto. Zezinho que não é escravo. Escravo não existe mais. Mas Zezinho que é preto. Zezinho que gasta na cachaça quase todo o dinheiro que ganha. Zezinho forte, forte, que me carrega, me joga pro ar e me torna a aparar.Zezinho que salvou o menino de Siô Barbosa no rio babando de cheio. Zezinho, no domingo, escornado no adro, esticado ao sol, e seu pretume luzindo, brilhando. E eu começo a entender porque papai gasta tanto com a farmácia. Porque estou sempre tomando vitaminas. Porque me ensinaram que é bom embranquecer. Porque meus pais suam tanto. Porque eles querem que eu seja dono de uma casa-grande. Porque papai sente que a planta morre e porque ele não sabe o porquê. Porque os meninos da turma não sentem que ela morre e porque eles sabem o porquê de ela procurar a abertura.
E é por isso que eu estou aqui. Lá eu faria sofrer, ao me verem reempretecer-me, aqueles que tanto sofreram por mim para que eu ficasse branco. Minhas pernas, meus braços e meu rosto voltaram ao natural. Inclusive entre os dedos e atrás das orelhas. Já consegui também que as palmas dos pés e das mãos ficassem pretos. Minha cabeça já é preta. Meu coração ta caminhando. E já tou aprendendo capoeira pra reconquista do sol.
Paris, 07/11/74