Racionalidade e espiritualidade cristã
É inquestionável a ligação direta entre a mensagem cristã e o direito natural.
Entretanto, o modelo de racionalidade até hoje usado para compreender e explicar a proposta de Cristo tem paulatina e progressivamente rompido com essa relação. Cada vez mais me convenço disso, principalmente ao constatar, no dia-a-dia da nossa vida “cristã,” aumentar-se o fosso entre a teoria e a prática, entre a palavra e o gesto,entre a profissão e o testemunho. Isso, sem falar desse mesmo paradoxo atravessando os séculos: as cruzadas, a inquisição, a colonização das Américas, o massacre das civilizações indígenas e a escravização da raça negra. Aliás, é também a essa contradição que tendo a atribuir a causa do celibato obrigatório, na igreja ocidental, para seus ministros, os mensageiros do amor, passando para nós leigos a impressão de que, na prática, só o celibato é caminho da pureza. (“o matrimônio é um mal necessário”, palavras de um ilustre prelado na década de 60)
É que esse modelo de racionalidade se fundamenta na lógica formal, modo de pensar historicamente determinado, de origem urbana, que vê a realidade através de categorias bem definidas, desprezando sua dimensão relacional. É essa lógica que consagra uma visão estanque de sujeito e objeto, onde um se pode, o outro não pode. E é a partir daqui que nasce, cresce e se consolida a ideologia do poder, da autoridade, da dominação, da exploração e do artificialismo (realidade urbana), fundamentos indispensáveis à perpetuação do patriarcalismo, cuja face mais visível e avançada é o atual capitalismo.
E para amarrar tudo isso de forma definitiva, ela põe na razão toda a fonte legítima de sabedoria, desqualificando os sentidos através da famosa tese da falacidade e, em se desqualificando os sentidos, não tem como não desqualificar os sentimentos ou emoções.
E para dar um nó cego no processo de humanização da sociedade, que é o que Cristo pregou, a lógica formal gerou e ainda sustenta um conceito de matéria que nos impede de interagir com qualquer realidade transcendente (Marx que o diga). É o conceito da mecânica que ainda permeia toda a nossa visão de mundo, onde matéria não vai além da dimensão da massa, nos impedindo de alcançar a dimensão da energia..
Einstein só pode revolucionar a física porque a lógica que sustentou sua visão de mundo passou da formal para a dialética. Pois essa é a lógica da natureza, da solidariedade e do amor. Nela sujeito é objeto e objeto é sujeito, porque nela o foco não é o elemento (categoria) e sim a relação entre eles, a sua dinâmica. E ao apreender a relação e ver que é nela que se encontra a força, a energia, realidades como dominação e exploração deixam de ter sentido. Poder e autoridade passam a ser relativizados. O conceito de indivíduo deixa de ser o de uma realidade estanque e autônoma e passa para o de uma realidade dinâmica e sistêmica. E assim o invisível passa a ser levado em conta, chegando a ser necessariamente percebido. E na medida em que é percebido passa a ser vivenciado, desafiando continuamente a nossa compreensão.
A questão, pois, da espiritualidade X racionalidade se coloca muito mais do ponto de vista da racionalidade. A espiritualidade todos cultivamos de um jeito ou de outro. Todos nos movemos, gestos, hábitos e ações, ou pelo princípio (espírito) do medo ou pelo princípio do amor.O que vale dizer que todos temos fé, seja no medo/dor, seja no amor/prazer. É portanto apenas uma questão de conversão. O problema está é em resolvermos nossa questão com a racionalidade. Aqui a questão é mais complexa por se tratar não mais de conversão, mas de migração.
Como já disse, nosso modelo natural é o da dialética. Entretanto quase toda a nossa formação (educação?!) se deu no modelo da lógica formal. E nessa lógica o programa do amor não roda, pois ela reproduz o poder, a dominação, o estratificado e o estático. O máximo que se pode é fazermos de conta que o programa do amor está sendo rodado, numa autêntica realidade virtual. É que esse software pode até conviver com o da lógica dialética, mas essa convivência vai gerar as tais das ambigüidades, dubiedades, incoerências, incongruências e até mesmo os surtos de esquizofrenia.
A solução, de fato, para que tenhamos harmonia e consigamos trilhar o caminho da felicidade, é promover em nós mesmos um choque de migração ou, se queiram, remigração para o modelo natural da dialética. Com ele podemos rodar o programa do amor, apagando progressivamente o programa do medo, e reencontrando paulatinamente a magia do Deus que, em algum momento, experimentamos na nossa infância, e assim passarmos a experimentar o “Verbo que se fez carne”, através de uma vivência de amor que não tenha fronteira entre discurso e prática.