O vigário e o benzedor
G. Fábio Madureira
Calça curta, pé no chão, lá ia eu com meus nove anos de idade. Um pouco contrariado! Afinal, já era coroinha há uns dois anos e o padre podia achar ruim de estar visitando uma benzedeira. Mas o que podia fazer? Já havia passado o remédio que o médico receitara. E como ardia! Nada, porém, de melhoras. Além do mais eu estava indo a mando de minha mãe. Ela disse que era a única coisa que podia dar jeito naquilo.
Seu nome era Angerca. Pelo menos era assim que a gente falava. Baixinha, meio corcunda, cabelos longos, foi logo me mandando assentar no toco de madeira que havia no canto da sala de chão batido. Perguntou-me o que que era. Disse-lhe que minha mãe falou que era cobreiro.
– Deixa eu ver…
Meio sem jeito, arregacei um pouco a perna da calça e deu para ela ver minhas virilhas. Minha pele estava toda vermelha e encanjicada.
– Tem quanto tempo?
– Mais ou menos uma semana.
– E por que só veio agora?
– Tava passando remédio…
– E por que não continua?
– Não tá adiantando nada.
– Esses doutor!… Não sabe nada e fica tapeando os outro. Num tem remédio pra isso não, minino. Só benzeção. Se ocê tivesse vindo quando apareceu, já tava curado.
E começou seu ritual. Folha de goiabeira! Picava e me mandava responder:
– É com isso que eu corto.
Não me lembro mais dos detalhes. Só sei que no outro dia o negócio começou a secar. Foi parando de coçar e daí a alguns dias minha pele estava novinha em folha. Que alívio! Da coceira. Do incômodo. E do ardume do remédio.
Como um coroinha responsável, estava doido para comentar com o Pe. Rubem e saber sua opinião. Mas tinha que esperar uma ocasião de só nós dois.
Ela apareceu. Ele foi dar a Extrema Unção num lugarzinho perto do Serro e me chamou pra ajudá-lo.
Na estrada, dentro de sua forreca, um ford bigode, puxei assunto.
– Pe. Rubem, benzeção é pecado?
– Se faz o bem, não. Por que você está me perguntando?
Tranqüilizado pela sua resposta, contei-lhe o meu caso.
– E o sr, acredita?
– Se sarou, só me resta acreditar.
– Não, sr. Padre. O sr. acredita em benzeção?
Foi então que ele me contou sua história.
Estava ele um dia na sacristia se aparamentando para a Missa, quando entra um fazendeiro conhecido. Muito católico e presente na vida da Igreja, veio perguntar se podia levar um benzedor à sua fazenda. Seu gado estava se definhando. Já havia usado todos os medicamentos e procedimentos recomendados. Mas o mal só fazia aumentar e se alastrar. Se continuasse daquele jeito, ia perder todo o seu rebanho.
Comentando com um amigo, também da roça, ficou sabendo de um benzedor que era tiro e queda. Bastava uma benzeção e o gado ficava novinho em folha.
– O Sr. acha que eu posso levá-lo, Padre?
– Pode sim, é claro. Mas primeiro eu quero ter uma conversinha com ele.
No mesmo domingo, de tardinha, o fazendeiro foi à casa paroquial levando o benzedor a quem o pe Rubem perguntou:
– O que o sr faz para curar a criação?
– Mando reunir o gado no curral. Faço minhas orações. Cruzo uns galhos de assa-peixe na porteira principal e depois saio abençoando as rezes.
– Além das orações, é preciso estes outros procedimentos? Perguntou pe Rubem, apelando para que ele fosse o mais franco possível.
– Na realidade não, padre. Basta eu firmar meu olhar no gado, que a bernedaiada cai toda.
– E por que você inventou todo esse ritual?
– Porque se não o pessoal não dá valor.
– Pois tudo bem. Deus lhe deu um dom e você vai continuar usando dele para fazer o bem. Mas sem iludir as pessoas. Isso é charlatanismo. E é aí que está o pecado. Portando, você vai à fazenda do meu amigo aqui e vai curar o gado dele. E tem mais: eu vou com vocês.
No outro dia cedo, rumaram para a banda do Lucas. Quando chegaram à fazenda, já estava na hora do almoço. E que almoço! Fizeram uma sestazinha, e lá pelas 13 hs o dono mandou reunir o gado.
O sol estava a pino e causticante. Era o ideal, de acordo com o benzedor. O curral ficou que não podia nem passar por entre as rezes. O benzedor se postou no meio da varanda e fixou o olhar no gado, girando-o lentamente da esquerda para a direita. No que seu olhar girava, os bernes iam pulando do gado parecendo enxame de pipocas.
– Agora o sr pode mandar seu vaqueiro buzuntar as feridas com azeite, porque já não tem nem mais um berne nas suas rezes.
– Como você vê, meu dileto, eu acredito. Acredito em Deus e na sua bondade em nos aquinhoar com seus dons. E somos muito mais capazes do que acreditamos atualmente. A gente é que não tem sabido lidar com os dons recebidos.