Sem cor-ação
G. Fábio Madureira
Qualquer brisa da manhã me abala com sua meiguice.
Qualquer vento mais macho me estremece nas bases que nem cheguei a ter.
Sou filho de uma família de sem-cabeças. Cortaram a cabeça do meu pai que sofreu muito com isso: depois ele me contou tudo. E para que seu filho não passasse pelo que ele passou, cortou-me os pés ao nascer. No que minha mãe de pronto concordou.
Sem raízes, sem pé no chão, qual o mal em se ter uma cabeça?!Muito antes pelo contrário! Ela passou a ser um simples balão inflável. Que nem biruta!
E assim eu não iria sofrer como ele. Seria aceito por todos. Ninguém nem nada me incomodaria. Porque, exatamente, não teria condições de incomodar a ninguém, muito menos ser subversivo. Qualquer coração que tocasse seria meu amor. Qualquer chão que pisasse seria minha terra. Não tinha pés…! Caatinga, terra rocha, terreno argiloso ou pedregoso, pântanos, asfalto: sempre estaria em casa.
Cedinho papai comprovou sua profecia: na escola fiquei sempre entre os primeiros. Nem parecia filho de sem-cabeças! Logo logo falava o português da mestra e fazia todas as operações. Papai, porque não tinha cabeça, ficava de boca aberta e quando em quando sorria de sábio: meu filho vai longe!
Mas também! … Nadar no tanque do leiteiro não podia: ia me misturar; no clube da cidade, era impossível: tinha de pagar. Jogar pelada no Alto do Rosário, como!? Brincar de pegador no adro da Matriz? Coitado de mim! E o pé?!
O jeito era fazer e desfazer quebra-cabeças. Ler todas as revistinhas que aparecessem. Decorar as histórias de fadas dos livros da escola pra depois contar pros outros e mostrar que eu era um menino inteligente.
E cantar… Sentar-me nas rodas de adultos que se formavam nas calçadas da vizinhança, ao cair da tarde, e escutar o Genaro que debulhava o violão de um jeito que nem dava pra gente ver seus dedos todos, que nem as pontas do cata-vento no mês de agosto, e escutar…., e escutar…., de vez em quando… cantar uma que eu já sabia e cuja estória não fazia sentido e que depois eu vim a saber que era porque trocava as palavras tipo barata cheia por garrafa cheia. E disso eu gostava. Cantar era bom. Confesso que era a única coisa que de fato eu fazia gostando. O resto fazia, e fazia bem, porque não tinha as outras coisas pra fazer. Por exemplo, enquanto escutava e cantava, os outros meninos corriam atrás das tanajuras para fazer farofa das bundas delas ou então usar de isca no córrego que formava o tanque do leiteiro.
Por isso cada vez mais eu brilhava nos estudos. Já estava quase terminando o científico. Nem parecia filho de sem-cabeças! Num concurso de redação que teve no estado sobre guerras, mostrei o primitivismo em que ainda se encontra o homem moderno ao destruir com a guerra o que constrói com tanto esforço. O ideal seria inventar-se uma bomba que matasse as pessoas e deixasse as construções intactas. Tirei o 1º lugar do concurso, o que me valeu a ida para a cidade grande cursar a Universidade, com todas as despesas por conta do governo.
Aí, teve muita gente do Serro que exclamou: quem diria hein! … o siô Zé da Venda com filho intelectual! O mundo já tá é de cabeça prabaixo!